segunda-feira, julho 10

Gente Feliz com Lágrimas

Com excepção dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas os barcos – os mesmo desse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto pela primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados, por cima do convés, os mesmos escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como olhos de peixe e as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadores continentais. E o pranto de muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.
Depois um e outro viram a ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se aos poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens. À medida que os rolos de espuma se distendiam à ré, num risco que espalmava e tornava liso aquele globo saltitante, a cordilheira vulcânica ia-se lentamente afundando ao longe. Do lado de cá do vento, e da electricidade que metaliza e faz correr a noite marítima, a última visão da ilha é mesmo essa cabeça de égua aflita, agitando-se na crista da serra a que chamam Pico da Vara. Sabe-se que naufraga e que o faz num suspiro altivo e superior: as orelhas, de súbito imóveis, mergulham a pique no fio dessa irresistível lâmina oceânica…

Melo, João de"Gente Feliz com Lágrimas" Colecção Mil Folhas Público, 2002

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