terça-feira, julho 4

As Cidades Invisíveis

O condutor de camelos que vê aparecer no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas de radar, esvoaçar nos aeroportos as mangas de vento brancas e vermelhas, deitar fumo as chaminés; pensa num navio, sabe que é uma cidade mas pensa-a como uma nau que o leva para fora do deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento já a inchar-lhe as velas ainda não desfraldadas, ou um vapor com a caldeira a vibrar na querena de ferro, e pensa em todos os portos, nas mercadorias do ultramar que os guindastes descarregam nos cais, nas tabernas onde tripulações de diferentes bandeiras quebram garrafas nas cabeças uns dos outros, nas janelas iluminadas dos rés-do-chão das casas, cada uma com uma mulher a pentear-se.
Por entre o nevoeiro da costa o marinheiro distingue a forma de uma bossa de camelo, de uma sela bordada de franjas cintilantes entre duas bossas sarapintadas que avançam a balançar, sabe que é uma cidade mas pensa-a como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforges cheios de frutas cristalizadas, vinho de palmeira, folhas de tabaco, e já se vê à cabeça de uma longa caravana que o leva para fora do deserto do mar, a caminho de oásis de água doce à sombra serrilhada das palmeiras, para palácios de grossas paredes caiadas, de pátios com mosaicos em que dançam descalças as bailarinas, e movem os braços um pouco dentro e um pouco fora do véu.
Todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem; e é assim que o condutor de camelos e o marinheiro vêem Despina, cidade de fronteira entre dois desertos.
Calvino, Italo "As Cidades Invisíveis" Editorial Teorema, 1995

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