quinta-feira, março 22

MUROS

Pedro já esquecera os contos de fadas (sempre interrompidos por um João Pestana fugidio como o Pai Natal), mas não as regras básicas, escrupulosamente seguidas pela avó Lena – milagres raros a cargo de gerente respeitável e com estatuto. A lógica subjacente merecera a aprovação quando, anos mais tarde, recordava noites ainda jovens, mãos engelhadas afagando-lhe os cabelos, promessas falsas para bem do seu menino. «Deixas-me dormir contigo?» E ela dizia que sim, jurava que o pusera na cama de manhãzinha, não fossem os pais descobrir a aliança clandestina. Mentia a pedido, melhor… a ordem dele, as crianças aceitam diferentes verdades – todas que existem -, só não gostam de as ver impostas.
Pois, os milagres… A avó Lena intuíra há muito que ao divino não convém a banalização. Começando por negá-lo, reprovava ao mistério de Fátima o ritmo anual, as curas numerosas, beatificações demasiado fáceis. Queria Deus um velho doce, não intervencionista, solitário. Era-lhe indispensável a certeza de que existíamos nós – bons, razoáveis, maus e péssimos – e Ele. Sem intermediários. Fossem eles burocratas de alguma hierarquia religiosa ou ex-vizinhos mortos e de tal modo afundados em boas obras que vogassem a meio caminho entre Céu e Terra. As consequências para as famosas histórias eram evidentes: cavaleiros banhados em suor, donzelas pacientemente bordando, pouca ajuda do Altíssimo e de fadas benfazejas. Não por acaso, o seu provérbio favorito sentenciava que quem quer bolota atrepa.


Vaz, Júlio Machado, in MUROS, edições Dom Quixote




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