terça-feira, março 20

Cemitério de Pianos

Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer.Nos últimos meses da minha vida, quando ainda conseguia fazer a pé o caminhoentre a nossa casa e a oficina, sentava-me numa pila de tábuas e, sem sercapaz de ajudar nas coisas mais simples: aplainar o aro de uma porta, pregarum prego: ficava a ver o Francisco a trabalhar compenetrado, dentro de umanévoa de pontos de serradura. Em novo, também eu tinha siso assim. Nessastardes, tanto tempo impossível depois de ter sido novo, certificava-me deque não estava a ver-me e, quando não aguentava mais, pousava a cabeçadentro das mãos. Segurava o peso imenso da minha cabeça: mundo: tapava osolhos com as mãos para sofrer dentro da escuridão, dentro de um silêncio quefingia. Depois, nas últimas semanas da minha vida, fui para o hospital.A Marta nunca me foi visitar ao hospital. Estava grávida do Hermes. Estavanos últimos meses, e a Marta, com a natureza que tem, precisou de muitoscuidados durante o tempo da gravidez. De repente, lembro-me de quando erapequena e tão feliz na trotinete que lhe comprei em segunda mão, lembro-mede quando ia para a escola, lembro-me de tanto. Enquanto eu estava nohospital à espera de morrer, a Marta estava noutro hospital, não demasiadolonge, à espera que o Hermes nascesse.
Peixoto, José Luis in "Cemitério de Pianos" Bertrand Editora, 2006


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