segunda-feira, abril 23

A CIDADE DAS FLORES

PRIMEIRO QUADRO


Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observava os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele – chamar-te-ás John, decidiu – recuara dois ou três metros, e ela – Mary – dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente do David. Encostou-se ao pedestal da estátua, tirou o lnço da cabeça e olhou para o marido. Este baixou-se um pouco, apontou demoradamente a máquina e disparou por fim.
Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio. Mas o marido gritara qualquer coisa: interrogativa, ela deu meia volta e viu John, que agitava um braço e abria e fechava a boca. Dizendo o quê? E Mary aproximou-se novamente do David, regressando o marido à posição anterior, a máquina preparada. « Talvez o primeiro retrato fique melhor do que o segundo», murmurou Giovanni, como se fosse ele o interessado.
Depois as situações inverteram-se: o marido posou então para a imortalidade. « Em Florença» - dirá aos amigos, de regresso a Londres, e indicando a fotografia. « Ah!» - exclamarão eles amavelmente.
Porquê? Porquê? O desejo insensato de falar com aqueles desconhecidos. Desconhecidos e talvez ridículos, assim, a tirar fotografias! E enquanto bebia o café escaldante, continuou a persegui-los com o olhar.
« Foi aqui que queimaram Savonarola – estará John a dizer. E pensa: - Estas foram as últimas imagens do Savonarola quando o fumo já subia e o ar quente ondulava as casas.»
Fazio deixou um livro em cima da mesa, a marcar o lugar, aproxima-se deles. Não que tenha a intenção de conversar (suas dificuldades, o seu pouco domínio do inglês paralisavam-no), desejava apenas que o vissem. Porquê? A princípio não percebeu. Queria que eles o vissem, queria sentir-se visto, observado.
Mary e John estavam agora na Loggia dei Lanzi, haviam-se sentado a descansar. Ela não era bonita, a boca parecia rasgada. E ele: demasiado magro, demasiado alto, demasiado branco.

Abelaira, Augusto in A CIDADE DAS FLORES, edição Bertrand


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