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quarta-feira, abril 23

NOVE MIL PASSOS

PRELÚDIO
Ah, como somos imprudentes quando jovens! Nos meus últimos anos de vida, tristemente constatei que em erra nenhuma nem Reino algum pudera valer menos que em Portugal. Relembrei então as sábias palavras do meu mestre Miguel Ângelo no dia em que, decidido em terras de Itália a regressar à minha Pátria Lisboa, dele me fui despedir. O seu olhar acidentalmente melancólico, mas mais intenso do que a mais perpétua tinta, fixou-me e ouvi-lhe o prevenido aviso:
- Se pela Arte da Pintura, da Escultura ou da Arquitectura esperais, meu amigo Francisco d’Ollanda, valer em Portugal, digo que viveis em esperança vã e ilusória; ficai antes em Itália, onde os engenhos se conhecem e muito se estima a grã Arte.
Respondi-lhe, relutante e seguro de mim mesmo:«Mestre!, vos tenho em mercê o conselho, mas todavia eu a El-Rei de Portugal sirvo e em Portugal nasci e espero morrer, e não em Itália. El-Rei D. João III, meu Senhor, mandou-me conhecer os primores e gentilezas de Itália e levar, sem carretas nem navios, em apenas leves folhas, todos os edifícios perpétuos e estátuas pesadas que tem a bela Roma e todas as cidades estrangeiras.»

Vieira, Pedro Almeida in NOVE MIL PASSOS edições D. Quixote


segunda-feira, abril 23

A CIDADE DAS FLORES

PRIMEIRO QUADRO


Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observava os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele – chamar-te-ás John, decidiu – recuara dois ou três metros, e ela – Mary – dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente do David. Encostou-se ao pedestal da estátua, tirou o lnço da cabeça e olhou para o marido. Este baixou-se um pouco, apontou demoradamente a máquina e disparou por fim.
Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio. Mas o marido gritara qualquer coisa: interrogativa, ela deu meia volta e viu John, que agitava um braço e abria e fechava a boca. Dizendo o quê? E Mary aproximou-se novamente do David, regressando o marido à posição anterior, a máquina preparada. « Talvez o primeiro retrato fique melhor do que o segundo», murmurou Giovanni, como se fosse ele o interessado.
Depois as situações inverteram-se: o marido posou então para a imortalidade. « Em Florença» - dirá aos amigos, de regresso a Londres, e indicando a fotografia. « Ah!» - exclamarão eles amavelmente.
Porquê? Porquê? O desejo insensato de falar com aqueles desconhecidos. Desconhecidos e talvez ridículos, assim, a tirar fotografias! E enquanto bebia o café escaldante, continuou a persegui-los com o olhar.
« Foi aqui que queimaram Savonarola – estará John a dizer. E pensa: - Estas foram as últimas imagens do Savonarola quando o fumo já subia e o ar quente ondulava as casas.»
Fazio deixou um livro em cima da mesa, a marcar o lugar, aproxima-se deles. Não que tenha a intenção de conversar (suas dificuldades, o seu pouco domínio do inglês paralisavam-no), desejava apenas que o vissem. Porquê? A princípio não percebeu. Queria que eles o vissem, queria sentir-se visto, observado.
Mary e John estavam agora na Loggia dei Lanzi, haviam-se sentado a descansar. Ela não era bonita, a boca parecia rasgada. E ele: demasiado magro, demasiado alto, demasiado branco.

Abelaira, Augusto in A CIDADE DAS FLORES, edição Bertrand