quinta-feira, outubro 18

O DUPLO

Eram quase oito da manhã quando o conselheiro titular Iákov Petróvitch Goliádkin acordou do seu longo sono, bocejou, se espreguiçou e, finalmente, abriu por completo os olhos. Ainda ficou mais dois minutinhos na cama, como uma pessoa que não tem a certeza absoluta de estar ou não estar acordada nem de saber se o que se passa à sua volta é a realidade ou a sequela dos desencontrados sonhos da sua noite. Rapidamente, porém, os sentidos do senhor Goliádkin começaram a captar com mais nitidez as normais e habituais sensações da manhã. Já se lhe apresentava familiar o verde-sujo das paredes poentas e fuliginosas do seu quartinho, e também a sua cómoda de mogno, as cadeiras a imitarem mogno, a mesa pintada de vermelho, o divã turco de oleado ruivo com florinhas verdes e, por fim, a roupa despida apressadamente na véspera e atirada num monte para cima do divã. Por último, espreitou-o da janela embaciada o dia outonal, cinzento, turvo e sujo, com uma careta tão zangada, tão azeda, que ao senhor Goliádkin se varreram as dúvidas de que não estava num reino de conto de fadas, mas na cidade de Petersburgo, a capital, na Rua Chestilávotchnaia, no terceiro andar de um prédio bastante grande, no seu próprio apartamento. Feita esta descoberta importante, o senhor Goiádkin fechou convulsivamente os olhos, como que lamentando a perda do sonho recente e desejando fazê-lo voltar por um bocadinho. Porém, não tardou um minuto e já pulava na cama, como se tivesse acertado finalmente no que tinha a fazer, depois de os seus pensamentos terem girado até àquele momento, dispersos e sem qualquer ordem, à espera de isso mesmo.
Dostoiévski, Fiódor in O DUPLO, Editorial Presença

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