sábado, outubro 27

crónica dos bons malandros

«Quem é?...»
Ficaram de olhos espetados na porta como se pudessem ver quem estava do outro lado. A campainha tocara por quatro vezes, apressada e suplicante, suspendendo as conversas, o bate-bate dos talheres, até as mandíbulas inertes a maia viagem da mastigação.
«Quem é?...»
«Sou eu, o Silvino!»
Era uma voz miada, fininha, um sussurro que encheu a sala, um grito segredado.
Os outros respiraram, num primeiro alívio, mas ainda na retranca: bom, era o Silvino, vá lá, mas vinha tarde e trazia fogo no rabo. Em passos de sombra, silencioso e profissional, Renato chegou-se à porta, abriu-a numa brusquidão sem aviso, e o solicitante, encostado por fora, derramou-se ao comprido no soalho de cera da sala de jantar.
«Onde estiveste? Que andaste a fazer?»
O grupo fitava-o numa mudez inimiga. «Peço desculpa de chegar tarde…», requereu, mas sabia que as coisas não ficavam assim, iam chateá-lo, armar-se em tribunal, ele a gramar o interrogatório e as fúrias temíveis de Renato, Renato o Pacífico, chefe do bando, amigo do coração, mas juiz sem dó em assuntos de serviço.
Recostado e gordo, Flávio, o Doutor, fez então uma coisa rara: falou. Quando se dava a tão espaçado incómodo, assembleia apurava o ouvido, sempre o mínimo de palavras para colocar a questão certa e urgente.
«Vinha alguém atrás de ti…»

Zambujal, Mário i Crónica dos bons malandros, Livraria Bertrand





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