domingo, outubro 21

A RELÍQUIA



Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em Teologia, autor de uma devota «Vida de Santa Filomena» e prior da Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora da Assunção, chamava-se Rufino da Assunção Raposo - e vivia em Évora com minha avó, Filomena Raposo, por alcunha «a Repolhuda», doceira na Rua do Lagar dos Dízimos. O papá tinha um emprego no Correio, e escrevia por gosto no «Farol do Alentejo».
Em 1853, um eclesiástico ilustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de Chorazin (que é em Galileia), veio passar o S. João a Évora, a casa do cónego Pita, onde o papá muitas vezes à noite costumava ir tocar violão. Por cortesia com os dois sacerdotes, o papá publicou no «Farol» uma crónica, laboriosamente respigada no «Pecúlio de Pregadores», felicitando Évora «pela dita de abrigarem seus muros o insigne prelado D. Gaspar, lume fulgente da Igreja e preclaríssima torre de santidade». O bispo de Chorazin recortou este pedaço do «Farol», para o meter entre folhas do seu Breviário; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o asseio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que ele cantava, acompanhando-se no violão, a xácara do conde Ordanho. Mas quando soube que este Rufino da Assunção, tão moreno e simpático, era o afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom seminário de S. José e nas veredas teológicas da Universidade, a sua afeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Évora deu-lhe um relógio de prata; e, por influência dele, o papá, depois de arrastar alguns meses a sua madraçaria pela Alfândega do Porto, como aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da Alfândega de Viana.
Queirós, Eça in A RELÍQUIA edção Ateliê Editorial

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