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quinta-feira, agosto 28

O MESTRE

A mentira é recriação de uma Verdade. O mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas ténues e delicadas.
Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer que o jogo resulte sempre. Resulte seja o que for ou do que for.
A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso.
Pelo menos ainda.
Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não se veja o movimento ou o espaço ou a duração.
Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.

Hatherly, Ana, in O MESTRE edições Quimera



...

só tu és pausa
fuga
além - palavra



ANA HATHERLY, Volúpsia

domingo, março 16

Quando Penso

Quando penso
a neve cai em mim
com uma lentidão sobrenatural



Não bate leve
Como quem chama por mim:
Não bate
Não chama
nem sequer cai



Paira
suspensa do tecido da matéria
onde só a luz cria o espaço



Mas sem luz não há espaço
e decorada por uma réstia de sol
imagino o meu pequeno vulto
lutando com o infinito descerto-acerto



Quando penso
no meu peito estremece
a oferenda última
duma fractura oculta.



Hatherly, Ana in O Pavão Negro, Assírio & Alvim, Abril 2003

domingo, março 9

OS JARDINS IMAGINÁRIOS

Os jardins imaginários
que de longe vislumbramos
pertencem
aos distraídos insensíveis entes
com que os povoamos


Sempre ficamos
do lado de cá de suas grades
desejosos-receosos de as passarmos


Sentimos o perfume
das rosas que inventamos
vemos o esplendor
dos frutos qu sonhamos


Contemplamos
na inventada montra dos prazeres
as sublimes doçuras que sonhamos
sentindo sempre
que não
não somos dignos
de fruir tais gozos


Nos proibidos jardins
que inventamos
nós
sombras-fantasmas
dum desejo que nos impele em vão
nós
jamais perturbamos
a serenidade
de seu eterno impassível Verão


Hatherly, Ana in RILKEANA edições ASSÍRIO & ALVIM

sexta-feira, janeiro 27

Príncipe

Era de noite quando eu bati à tua porta
E na escuridão da tua casa tu vieste abrir
E não me conheceste.
Era de noite
São mil e umas
As noites em que bato à tua porta
E tu vens abrir
E não me reconheces
Porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
Quando eu bati à tua porta
E tu vieste abrir
Os teus olhos de repente
Viram-me
Pela primeira vez
Como sempre de cada vez é a primeira
A derradeira
Instância do momento de eu surgir
E tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
E tu vieste abrir
E viste-me
Como um naufrago sussurrando qualquer coisa
Que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
E por isso
Tu soubeste que era eu
E vieste abrir-te
Na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
E de súbito
Tudo era apenas lábios pálpebras
Intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
Volteios de palpitações tremulas adejando
Pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
Beijava-te pensando
E estendia a mão
Sobre o meu pensamento corria para ti
Minha praia jamais alcançada
Impossibilidade desejada
De apenas poder pensar–te

São mil e umas

As noites em que não bato à tua porta
E vens abrir-me

Ana Hatherly