domingo, fevereiro 17

CRIME E CASTIGO



Ao entardecer de um dia muito quente de início de Julho, um jovem saiu do cubículo que subalugara na ruela S… e pôs-se a caminhar lentamente, como que indeciso, na direcção da ponte K…
Foi sorte ter evitado o encontro com a senhoria nas escadas. O cubículo era na água-furtada de um prédio alto, de quatro andares, e parecia mais um armário do que um compartimento. Pois bem, a senhoria que lhe subalugara o cubículo, com almoço e serviço incluídos, ocupava o andar situado abaixo dele um lanço de escadas e, sempre que acontecia o jovem sair para a rua, era inevitável passar ao lado da cozinha dela, com a porta quase sempre escancarada para o patamar. De cada vez que passava diante daquela porta, o rapaz tinha uma sensação cobarde e malsã que o envergonhava, e franzia a cara. Devia muito à senhoria, receava dar de caras com ela.
Não por ser pusilânime e assustadiço, pelo contrário; mas havia uns tempos que andava assim, num estado tenso, irritável, como na hipocondria. De tal modo se ensimesmara e isolara de toda a gente que já tinha medo de qualquer encontro, e não só com a senhoria. Pesava-lhe a pobreza, esmagava-o; contudo, até essa situação de aperto deixara de incomodá-lo, ultimamente. Deixou de tratar do dia-a-dia, nem queria pensar nesses problemas. No fundo, a senhoria não o assustava, fosse o que fosse que andava a tramar contra ele. Mas havia as escadas, parar, ouvir todos os disparates sobre todas as ninharias corriqueiras, de que não queria saber, todos aqueles assédios a exigir o pagamento, as ameaças, as queixas, e ainda ter de esquivar-se, desculpar-se, mentir - isso não, era melhor esgueirar-se como um gato pelas escadas, fugir sem ser visto por ninguém.
Desta vez, ao sair para a rua, até ficou espantado consigo por tanto medo de encontrar a credora.
Dostoiévski, Fiódor in Crime e Castigo, Editorial Presença

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