quinta-feira, maio 24

Levantados do Chão

O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos.
Não faltam cores a esta paisagem. Porém, nem só de cores. Há dias tão duros como o frio deles, outros em que não se sabe de ar para tanto calor: o mundo nunca está contente, se o estará alguma vez, tão certa tem a morte. E não faltam ao mundo cheiros, nem sequer a esta terra, parte que dele é servida de paisagem. Se no mato morreu animal de pouco, certo que cheirará ao podre do que morto está. Quando calha estar quieto o vento, ninguém dá por nada, mesmo passando perto. Depois os ossos ficam limpos, tanto lhes faz, de chuva lavados, de sol cozidos, e se era pequena o bicho nem a tal chega porque vieram os vermes e os insectos coveiros e enterraram-no.

Saramago, José in Levantados do Chão edições Caminho


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