Chove, e do outro lado da rua um velho olha os carros que passam. Apoia-se numa bengala e numa mão tem um saco de plástico transparente com algumas maçãs dentro, três ou quatro maçãs vermelhas. Os olhos são sublinhados, cada um, por uma linha muito carregada, e logo acima duas outras rugas começam a aparecer, mas muito timidamente ainda, muito timidamente, ou então assim parece por contraste com a primeira. Muito grande, um autocarro precipita-se rua abaixo. O velho olha para o saco que tem na mão, talvez para ter a certeza de ainda o ter na mão, talvez porque está a pensar se lhe apetece comer uma maçã, talvez por outra razão qualquer, ou por razão nenhuma, e o autocarro passa nessa altura, mesmo junto ao passeio, num vento rápido e pesado, vuuuuu. A luz brilha num repente. Numa esquina ao fundo o autocarro vira, segue por outra rua, por detrás de um prédio abandonado. Os carros continuam a passar ininterruptamente. E continua a chover, a chover. Coça a cabeça agora o velho, a mão pintalgada por manchas castanhas por entre o branco dos cabelos, e de repente vê qualquer coisa. Levanta o braço, um táxi abranda. Depois dá um passo em frente, em direcção ao sítio onde deverá ficar a porta detrás do carro, mas nesse preciso momento este acelera e desaparece. Por uns segundos há um silêncio estranho, irreal quase. Não passa mais nenhum automóvel. O velho então baixa os olhos e segue pelo passeio. Anda devagar, muito devagar, uma mão segura o cabo da bengala, a outra o saco com as maçãs. Vai-se embora e nunca mais levanta a cabeça.
Pires, Jacinto Lucas in AZUL TURQUESA edições Cotovia
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