quinta-feira, novembro 22

UM ESTRANHO EM GOA

As gralhas, lá fora, ralham umas com as outras. Arranharam a noite numa algazarra áspera. Viro-me no colchão tentando encontrar um pedaço fresco de lençol. Sinto que estou a ser cozinhado ao vapor como se fosse um legume. Salto da cama e sento-me no parapeito da janela. Se fumasse – nunca fumei – seria agora a altura certa para acender um cigarro. Assim, fico a olhar a enorme figueira (Ficus benghalensis) no quintal, tentando seguir entre as sombras o combate das gralhas. Não sopra o alívio de uma brisa. A noite, porém, girando por sobre Pangim imensa e límpida, com a sua torrente de estrelas, refresca-me a alma.
Penso nesta frase e não gosto dela. Está uma noite de cristal, funda, transparente, e isso produz, realmente, uma certa sensação e frescura. Acho que do que não gosto nesta frase é da palavra alma. Alma parece-me uma palavra muito grande. Já toda a grnte abusou dela, poetas medíocres, filósofos, guerreiros, conspiradores, mas ainda assim continua enorme. Risco a alma e mantenho as estrelas. Nas grandes cidades não é possível ver as estrelas.
Volto ao quarto e ligo o computador. A frase “O que faço eu aqui?”, título de uma recolha de textos de Bruce Chatwin, desliza lentamente no écran. Uso-a desde há muito como cortina de protecção. Nesta cidade remota, à uma hora da madrugada, parece-me uma boa pergunta.

Agualusa, José Eduardo in Um Estranho Em Goa, edições Cotovia


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