domingo, abril 5

O DESPIR DA NÉVOA

Espero por ti nesta varanda sobre o tempo. De pé, frente à vidraça, olhando a cidade. As pregas do cortinado, impressas ao entardecer, dão às casas um perfil soturno. Como se as visse através de grades. Seis e meia, Berta. Que te fará tardar? Quantas vezes aguardei que chegasses, aqui, no quarto que habitaste com os teus medos e excessos.
Do lado de lá da rua, junto ao semáforo. Gabardina cinza-claro, guarda-chuva de ramagens. Depois, num breve espaço, o andar nervoso, passos de gaivota aturdida já perto do abrigo. A perna levemente musculosa, apraz ver uma mulher, assim, de cima, enquanto a chuva cai, o embrulho colorido contra o peito, sobre o lado esquerdo. Era o primeiro encontro no apartamento, após as surtidas de automóvel pela linha do Estoril, a horas crepusculares. Meteste a chave na porta, entraste. E eu a conjecturar: fechado o guarda-chuva, o embrulho sobre a mesinha de mármore, despias a gabardina, deste um jeito ao cabelo: ufa, que tempo. Sorriste.
- Trazes os lábios frios. (Dois pombos sem ninho?)
Voz macia. Prendeste-me pela cintura, braços em anel. Beijámo-nos. Na rádio, uma peça de Rachmaninov.

Mendes, José Manuel in O Despir da Névoa - Círculo de Leitores


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